A doação dos órgãos de uma
pessoa falecida pode ajudar até 25 doentes. Mas, no mundo todo, os sistemas de
transplantes enfrentam o problema da recusa familiar. Nesta reportagem você vai
entender por que quase a metade das famílias brasileiras ainda diz “não” à
doação de órgãos.
Seu
parente morreu. Você e sua família estão chocados, abalados, desorientados com
a perda. Nesse momento, um enfermeiro pede para conversar com vocês e solicita
que autorizem a doação dos órgãos do seu parente. O que você faz? O que você
pensa? Hoje, quase a metade das famílias brasileiras diz “não”, na Bahia 70%. E
um estudo da Universidade Federal de São Paulo, Unifesp, identificou três
motivos principais para essa alta taxa de recusa, que não ocorre só no Brasil.
São eles: incompreensão da morte encefálica, falta de preparo da equipe para
fazer a comunicação sobre a morte e religião. A coordenadora do estudo,
professora Bartira de Aguiar Roza, explica o primeiro motivo:
"Na verdade, não é que ele não compreende o
diagnóstico de morte encefálica, mas que o indivíduo não compreende que seu
parente está morto. Essa é a principal questão. Não foi explicado pra ele o
suficiente ou ele também ainda está numa fase do luto em que ele não aceita
essa informação de que seu parente faleceu."
Entra aí o segundo motivo: nesse momento de dor, a
equipe de saúde tem que ser muito bem preparada para abordar a família,
respeitando sua fragilidade, valorizando sua perda e tirando todas as suas
dúvidas sobre os procedimentos de retirada de órgãos sem violação do corpo. A
coordenadora-substituta do Sistema Nacional de Transplantes, Patrícia Freire,
reconhece que esses profissionais precisam ser mais bem treinados e garante que
esse investimento está sendo feito:
"A negativa familiar ainda é muito alta no
Brasil, de fato, mas a família brasileira é solidária e quando ela é chamada
pra auxiliar em qualquer causa, no geral, ela comparece, ela se solidariza e
ajuda, a gente tem vários exemplos, não só nos transplantes como em outras
situações, as
famílias compareceram doando água, doando roupas, fazendo o maior número de
doações possíveis. O que a gente precisa investir para diminuir a recusa
familiar é principalmente investir na capacitação dos profissionais que vão
entrevistar essas famílias."
O tema é tão importante que algumas universidades
oferecem cursos para profissionais de saúde sobre comunicação de más notícias.
Na Unifesp, por exemplo, o tema é trabalhado tanto em cursos de curta duração
quanto em pesquisas de mestrado e doutorado. Eu conversei com a professora
Janine Schirner sobre esses cursos da Unifesp. E, segundo ela, o resumo da
ópera é o seguinte: se a família não for bem acolhida na sua perda, não vai
atender ao pedido de doação dos órgãos:
"As pessoas não estão preparadas pra isso.
Nós, seres humanos, quando temos uma perda, não sabemos lidar com ela. Então, o
profissional que tem que lidar com isso precisa ter uma série de ferramentas
emocionais e de conhecimento de legislação, de ética, de bioética para que ele
possa compreender e ter a sensibilidade necessária pra entender a dor das
pessoas que perdem. [...] Não basta ser enfermeiro simplesmente. Esse
enfermeiro tem que ser qualificado para lidar com esse aspecto em si. Não pode
ser um autômato que trata aquilo como um protocolo, que tem um procedimento
para seguir. Às vezes, esse procedimento a seguir envolve uma legislação, mas
envolve muito mais do que isso, que é como lidar com as pessoas, como respeitar
o sentimento do familiar que tem aquela perda e que você tem que chegar nele e
falar da morte e da possibilidade que esse familiar tem de doar os
órgãos."
O terceiro motivo que leva uma família a negar a
doação de órgãos é a religião. A professora Bartira Roza, coordenadora de um
estudo sobre recusa familiar, explica:"A gente já fez algumas pesquisas mostrando e
nós temos documentos de todas as religiões mostrando que nenhuma religião se
contrapõe à doação de órgãos. O que ocorre é que as famílias às vezes não
querem mais continuar conversando sobre doação ou elas têm uma outra concepção
religiosa a respeito da doação, que nem é da sua religião, mas é a concepção
individual e aí elas acabam dizendo que é religioso, não vou doar porque minha
religião não acredita, enfim."
Pela lei brasileira, a retirada de órgãos e tecidos
de pessoa falecida depende de autorização de cônjuge ou parente de até segundo
grau, ou seja, pai, mãe, filhos, irmãos, avós e netos. O interesse da pessoa em
doar manifestado em vida não tem validade legal, ainda que registrado em carta,
testamento ou qualquer outro documento. Um projeto de lei [PL 889/15] do
deputado Baleia Rossi, do PMDB paulista, quer mudar essa situação. Segundo o
projeto, a pessoa interessada em se tornar doadora de órgãos poderá solicitar o
registro da expressão “doador de órgãos e tecidos” na sua carteira de
identidade ou carteira de motorista. Para o deputado Baleia Rossi, a intenção é
facilitar a tomada de decisão da família:
"Eu vi alguns estudos que dizem que até o
tempo escasso pra tomada da decisão de doar acaba prejudicando, a falta de
comunicação ou a não unanimidade entre os parentes dessa decisão, a dúvida se o
cadáver vai ter alguma deformação. Então, são dados que, claro, exigem muito
mais um esclarecimento, mas acho que mais do que isso, nós temos que incentivar
a doação de órgãos e nada mais justo do que a pessoa já se declarar como
doadora. Isso facilitaria até a família enlutada, num momento de grande
dificuldade, num momento de pesar e, cá entre nós, não é um tema que todos
gostam de falar: olha, se acontecer algo comigo, eu gostaria que vocês doassem
meus órgãos, não é uma conversa comum nas famílias."
Para a professora Janine Schirner, da Unifesp, um
documento feito em vida registrando a vontade do doador pode ajudar no momento
da morte, mas ele não exclui a necessidade da pessoa que deseja se tornar
doadora de conversar com todos os membros da família:"Veja que no cenário da doação de órgãos, às
vezes você tem mais de um familiar junto. Você tem marido, pai, irmão. E você
vai fazer essa conversa com todas essas pessoas. [...] Aí imagina que você
falou pra alguém, eu disse pra minha mãe que eu queria ser doadora e tenho até
uma declaração, mas vamos imaginar que seu marido, seu companheiro, alguém que
esteja com você não soubesse disso. A pessoa pode se sentir traída, 'mas eu não
sabia'. Essa discussão não é imaginária, ela acontece. Aí você tem um que diz:
eu não sabia disso, mas ela sempre me falou, isso foi só pra você, não foi pra
mim. Até que se chegue a um consenso das pessoas, e as pessoas: ‘então tudo
bem, se ela queria, nós vamos respeitar’, isso pode levar algum tempo. Pode ser
que abrevie esse tempo de discussão que, para um órgão, é fundamental, porque ele
tem hora pra gente trabalhar com ele, aí você já tem um documento, não é só a
palavra da sua mãe ou do seu marido: ‘pra mim ela disse’."
Outro fator que impede que mais pacientes sejam
beneficiados por um transplante de órgão de doador falecido é a subnotificação
de casos de morte encefálica. O João Luís Erbs Pessoa é doutorando da Escola de
Enfermagem da Unifesp. Ele defende a obrigatoriedade de comissões de doação de
órgãos e tecidos para transplante em todos os hospitais, com a função de
identificar casos de morte encefálica e dar continuidade ao processo de doação.
Hoje, elas já existem em alguns hospitais, mas não há punição para o
estabelecimento que não a institui, e os profissionais não têm dedicação
exclusiva. Reportagem de Verônica Lima, da Rádio Câmara, em Brasília.
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