quinta-feira, 6 de setembro de 2018

RECUSA FAMILIAR PARA DOAÇÕES DE ÓRGÃOS


A doação dos órgãos de uma pessoa falecida pode ajudar até 25 doentes. Mas, no mundo todo, os sistemas de transplantes enfrentam o problema da recusa familiar. Nesta reportagem você vai entender por que quase a metade das famílias brasileiras ainda diz “não” à doação de órgãos. 

Seu parente morreu. Você e sua família estão chocados, abalados, desorientados com a perda. Nesse momento, um enfermeiro pede para conversar com vocês e solicita que autorizem a doação dos órgãos do seu parente. O que você faz? O que você pensa? Hoje, quase a metade das famílias brasileiras diz “não”, na Bahia 70%. E um estudo da Universidade Federal de São Paulo, Unifesp, identificou três motivos principais para essa alta taxa de recusa, que não ocorre só no Brasil. São eles: incompreensão da morte encefálica, falta de preparo da equipe para fazer a comunicação sobre a morte e religião. A coordenadora do estudo, professora Bartira de Aguiar Roza, explica o primeiro motivo: 

"Na verdade, não é que ele não compreende o diagnóstico de morte encefálica, mas que o indivíduo não compreende que seu parente está morto. Essa é a principal questão. Não foi explicado pra ele o suficiente ou ele também ainda está numa fase do luto em que ele não aceita essa informação de que seu parente faleceu."

Entra aí o segundo motivo: nesse momento de dor, a equipe de saúde tem que ser muito bem preparada para abordar a família, respeitando sua fragilidade, valorizando sua perda e tirando todas as suas dúvidas sobre os procedimentos de retirada de órgãos sem violação do corpo. A coordenadora-substituta do Sistema Nacional de Transplantes, Patrícia Freire, reconhece que esses profissionais precisam ser mais bem treinados e garante que esse investimento está sendo feito: 

"A negativa familiar ainda é muito alta no Brasil, de fato, mas a família brasileira é solidária e quando ela é chamada pra auxiliar em qualquer causa, no geral, ela comparece, ela se solidariza e ajuda, a gente tem vários exemplos, não só nos transplantes como em outras situações, as famílias compareceram doando água, doando roupas, fazendo o maior número de doações possíveis. O que a gente precisa investir para diminuir a recusa familiar é principalmente investir na capacitação dos profissionais que vão entrevistar essas famílias."

O tema é tão importante que algumas universidades oferecem cursos para profissionais de saúde sobre comunicação de más notícias. Na Unifesp, por exemplo, o tema é trabalhado tanto em cursos de curta duração quanto em pesquisas de mestrado e doutorado. Eu conversei com a professora Janine Schirner sobre esses cursos da Unifesp. E, segundo ela, o resumo da ópera é o seguinte: se a família não for bem acolhida na sua perda, não vai atender ao pedido de doação dos órgãos: 

"As pessoas não estão preparadas pra isso. Nós, seres humanos, quando temos uma perda, não sabemos lidar com ela. Então, o profissional que tem que lidar com isso precisa ter uma série de ferramentas emocionais e de conhecimento de legislação, de ética, de bioética para que ele possa compreender e ter a sensibilidade necessária pra entender a dor das pessoas que perdem. [...] Não basta ser enfermeiro simplesmente. Esse enfermeiro tem que ser qualificado para lidar com esse aspecto em si. Não pode ser um autômato que trata aquilo como um protocolo, que tem um procedimento para seguir. Às vezes, esse procedimento a seguir envolve uma legislação, mas envolve muito mais do que isso, que é como lidar com as pessoas, como respeitar o sentimento do familiar que tem aquela perda e que você tem que chegar nele e falar da morte e da possibilidade que esse familiar tem de doar os órgãos."

O terceiro motivo que leva uma família a negar a doação de órgãos é a religião. A professora Bartira Roza, coordenadora de um estudo sobre recusa familiar, explica:"A gente já fez algumas pesquisas mostrando e nós temos documentos de todas as religiões mostrando que nenhuma religião se contrapõe à doação de órgãos. O que ocorre é que as famílias às vezes não querem mais continuar conversando sobre doação ou elas têm uma outra concepção religiosa a respeito da doação, que nem é da sua religião, mas é a concepção individual e aí elas acabam dizendo que é religioso, não vou doar porque minha religião não acredita, enfim."

Pela lei brasileira, a retirada de órgãos e tecidos de pessoa falecida depende de autorização de cônjuge ou parente de até segundo grau, ou seja, pai, mãe, filhos, irmãos, avós e netos. O interesse da pessoa em doar manifestado em vida não tem validade legal, ainda que registrado em carta, testamento ou qualquer outro documento. Um projeto de lei [PL 889/15] do deputado Baleia Rossi, do PMDB paulista, quer mudar essa situação. Segundo o projeto, a pessoa interessada em se tornar doadora de órgãos poderá solicitar o registro da expressão “doador de órgãos e tecidos” na sua carteira de identidade ou carteira de motorista. Para o deputado Baleia Rossi, a intenção é facilitar a tomada de decisão da família: 

"Eu vi alguns estudos que dizem que até o tempo escasso pra tomada da decisão de doar acaba prejudicando, a falta de comunicação ou a não unanimidade entre os parentes dessa decisão, a dúvida se o cadáver vai ter alguma deformação. Então, são dados que, claro, exigem muito mais um esclarecimento, mas acho que mais do que isso, nós temos que incentivar a doação de órgãos e nada mais justo do que a pessoa já se declarar como doadora. Isso facilitaria até a família enlutada, num momento de grande dificuldade, num momento de pesar e, cá entre nós, não é um tema que todos gostam de falar: olha, se acontecer algo comigo, eu gostaria que vocês doassem meus órgãos, não é uma conversa comum nas famílias."

Para a professora Janine Schirner, da Unifesp, um documento feito em vida registrando a vontade do doador pode ajudar no momento da morte, mas ele não exclui a necessidade da pessoa que deseja se tornar doadora de conversar com todos os membros da família:"Veja que no cenário da doação de órgãos, às vezes você tem mais de um familiar junto. Você tem marido, pai, irmão. E você vai fazer essa conversa com todas essas pessoas. [...] Aí imagina que você falou pra alguém, eu disse pra minha mãe que eu queria ser doadora e tenho até uma declaração, mas vamos imaginar que seu marido, seu companheiro, alguém que esteja com você não soubesse disso. A pessoa pode se sentir traída, 'mas eu não sabia'. Essa discussão não é imaginária, ela acontece. Aí você tem um que diz: eu não sabia disso, mas ela sempre me falou, isso foi só pra você, não foi pra mim. Até que se chegue a um consenso das pessoas, e as pessoas: ‘então tudo bem, se ela queria, nós vamos respeitar’, isso pode levar algum tempo. Pode ser que abrevie esse tempo de discussão que, para um órgão, é fundamental, porque ele tem hora pra gente trabalhar com ele, aí você já tem um documento, não é só a palavra da sua mãe ou do seu marido: ‘pra mim ela disse’."

Outro fator que impede que mais pacientes sejam beneficiados por um transplante de órgão de doador falecido é a subnotificação de casos de morte encefálica. O João Luís Erbs Pessoa é doutorando da Escola de Enfermagem da Unifesp. Ele defende a obrigatoriedade de comissões de doação de órgãos e tecidos para transplante em todos os hospitais, com a função de identificar casos de morte encefálica e dar continuidade ao processo de doação. Hoje, elas já existem em alguns hospitais, mas não há punição para o estabelecimento que não a institui, e os profissionais não têm dedicação exclusiva. Reportagem de Verônica Lima, da Rádio Câmara, em Brasília.

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